19 dezembro, 2005

Frio


Vi-te, parece que foi ontem, a roçar a esquina com a rua da Nazaré. Pensei que tivesses dito que a hipocrisia não duraria... ou ter-te-ei imaginado a roçar a esquina com a rua da Nazaré, cortares pelo jardim do Leão e seguires em frente rumo ao cais?
Julguei que tivesses dito que a hipocrisia não duraria.
Nem que deixarias de acreditar.
Pelos vistos venceram-te e num dia tornaste-te em outro que não tu. Quando penso nisso, dá-me o frio. Congelam-se-me as articulações, quebram-se-me os ossos. O cabelo, solto, torna-se gelado, como se a brisa que vem do mar o conservasse para sempre.
Pensei que nunca deixasses de aparecer.
Nem de rir no canto da casa quando eu caía do escadote e tentava ser mais do que simples mulher para te impressionar. Nunca consegui pregar um martelo direito, até hoje, acreditas? Se aqui estivesses, volvidos estes 20 anos, tentarias esconder o riso e dar-me-ias a desculpa do costume. E fugirias para o canto da casa, onde ririas sem parar...
Quando me povoas o pensamento, o coração corre demasiado depressa. Remexo nas coisas que me deixaste e sinto que tudo é uma questão de tempo. O relógio de ouro, o retrato que me pintaste. Tempo é o que não me falta, agora que estou aqui, esbranquiçada e quebrada pelas horas sem ti. Vinte anos sem o teu sorriso são demais e todos esses anos não bastaram para te conseguir diluir nas águas que inundam o cais...
Parece que foi ontem. Roçaste a esquina com a rua da Nazaré, cortaste pelo jardim do Leão e seguiste em frente rumo ao cais. Acordei de noite e vi-te de passo apressado a descer a rua e achei estranho. Vestindo o casaco, imaginava-te a ir a mil sítios diferentes, mas não àquele. Nunca àquele. Apressada, seguia-te confusamente e contive-me demasiadas vezes com o teu nome. Não era suposto seguir-te, mas nem sequer era suposto amar-te...
A luz do farol encadeou-me, mas mesmo assim pude ver-te chegar ao cais e ver-te parado, como que a decidir algo muito importante. Mesmo correndo para ti não me ouviste...e desapareceste na escuridão do mar.
Um dia, também eu me diluirei nessa espuma, nessas águas de prata que te levaram de mim. Guardarei o teu relógio e o retrato que me pintaste e a nossa história será um eco esquecido de outros tempos. Depois, roçarei a esquina da rua da Nazaré e serei outra que não eu. Serei algo que só tu poderás alcançar...

by Lunaris

2 comentários:

  1. Hmmm, um misto entre o cansaço, o gélido futuro que tem em ombros o rochedo do passado... boa prosa.

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  2. Tocante. E já vi que foste publicada, muito bem. :)

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