19 outubro, 2005

Crime terceiro - parte II

Não tem nome o que te conto. A carta pretende ser curta e concisa, directa e temente. Mas sei que assim não será, demorarás o teu tempo a abri-la, reflectirás num ou outro pormenor do teu dia sempre igual aos outros...
Sem dúvida que poderia ter-te contado quem era, quem me gerou e quem me levou até ti... Mas nunca o achei necessário, não considerava carregar um segredo, apenas a origem do primeiro dos meus dias.
Lembras-te da lenga-lenga dela?... Cheiras a terra, E a alecrim molhado...
Eu ouvia-a até à exaustão, e sentia que ela a cantava até se sentir sem fôlego... Depois parava, deitava-se ao meu lado e eu sentia o silêncio a unir-nos. Esses eram momentos mágicos.
De manhã, os passeios intermináveis pela floresta. Antes de chegarmos à clareira, repetia-me sempre que podia falar contigo sem que me ouvisses e abraçar-te sem que me sentisses.
“Aquela é a Doroteia”, dizia-me, e eu sorria, nunca perguntando o porquê daquele nome... Agarrava-me na mão e continuava, “aquele é o David e o outro mais abaixo o Xavier...”, eu dizia que sim, assentando com um gesto que não desmentia a minha felicididade por ter uma mãe que dava nome às flores e aos carvalhos...
Nessas alturas tentava sentir-te connosco. Ainda hoje não percebo como é que poderia desejar-te ali. Ambos sabemos que nunca conseguirias sentir a ternura daqueles dias. Tal como nunca compreendeste aquela serenidade contagiante que ela derramava por todos os cantos.
Depois do crime terceiro, ela soube que tu nunca voltarias. E teve a certeza que eu nunca poderia conhecer-te, nem compreender o que tinhas feito e porquê. E tinha razão.
Não falo do teu passado de nevoeiros e lábios cor de sangue. Falo de tentares como nunca tentaste, de chegares connosco pela manhã e sentares-te sob o carvalho Xavier e na sua sombra ouvires a lenga-lenga que me purificava os dias.
Mas sei que nunca pararias para te lembrar do tempo em que podias ver-me. Ficarias como agora, ao ler esta carta, imóvel, de olhos nublados...

by Lunaris

(continuará)

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