01 abril, 2009

Diz quem viu...

Todos os dias, o rapaz saía à rua. De cabelo abandalhado, óculos escuros, casaco castanho coçado, cigarro ao canto dos lábios, trauteando um qualquer hino heavy metal. Os passos contavam-se largos mas lânguidos, próprios de quem encara o dia como uma eterna segunda-feira. Ao seu lado, um pequeno chihuahua, trotava alegremente, embevecido pelas largas ruas solarengas, soltando de quando em quando um latido maroto, em resposta a um jeitoso espécime canino. À passagem do estranho duo, os transeuntes entreolhavam-se, deixando-se mirar a combinação exótica dos dois lados do espelho. Uns riam-se. Outros, mais velhos, abanavam a cabeça, maldizendo a juventude enlouquecida. Mas o rapaz, o cão e a trela que os unia, irmanando-os naquele passeio sem retorno, seguiam como sempre, rumo ao infinito do verde plácido, que a poucos quarteirões repousava, encalorado pelo sol do meio-dia. Sem dúvida, havia ali uma cumplicidade algo inusitada, e em breves entreolhares de cão e homem quase se podia pressentir que ambos conheciam bem o seu destino. Quarteirão após quarteirão, os lábios do rapaz, finos, de um rosado esmaecido, soltavam-se cada vez mais, dando ao canto mais ênfase e energia. A pele pintava-se de branco, roubando o sangue, destacando as veias azuladas. As mãos, primeiro repousadas, passaram depois a frenéticas, imprimindo um balanço violento à trela. Porém, dali a cinquenta passos, tudo mudaria. Rapaz e cão chegariam ao jardim, olhariam a Pedra Escolhida e ficariam sentados no Banco Favorito, durante uma quantidade de tempo imensurável, a olhá-la sem qualquer emoção. Depois, soaria o pregão do homem das castanhas, a cantilena do homem dos gelados, marcando como chegada a hora de actuar. Diz quem viu que rapaz e cão seguiram em frente, para perto de uma grande pedra cravada na terra, desde tempos imemoriais. Diz quem viu, que o rapaz subiu a pedra, alcançou o chihuahua, ficando os dois à breve distância de um metro do chão. Diz quem viu que não sabe explicar: o cão, voando em direcção ao dono, traçou duas voltas em seu redor e logo desapareceu, deixando trela a cortar a carne, a sugar a respiração. Ao som das três badaladas do sino episcopal, o rapaz abandonou-se ao chão. Sempre de cigarro ao canto dos lábios, esboçando um sorriso perturbador. Conta quem sabe, que na pedra há figuras, umas humanas outras de animais. E os mais velhos acreditam: duas delas são recentes, de um cão e de um rapaz.

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