14 agosto, 2008

O Mistério do Bom Samaritano

Gostava de caminhar de noite. Sentia-se livre ao caminhar pelas ruas escuras e nuas da cidade profunda, sem carros barulhentos, sem queixumes de pessoas apressadas, sem a luz cinzenta do sol que nunca irradiava por completo.
Gostava, assim, de se sentir livre. Longe da casa assustadora, que gemia por todos os cantos, indignando-se qual velhota de cem anos, por nunca ter sido remodelada. Pensava ouvir vozes, pensava ouvir risos de crianças, passos alarmantes, por vezes, mas sabia que tudo isso era impossível, pois em vinte anos aquele casarão negro, envelhecido pelos anos e maus-tratos, só conhecera uma alma – a sua.

De modo que, quando a noite descia pela cidade, procurava o silêncio e o sossego que a casa não lhe oferecia. Conhecia cada canto da cidade, cada mendigo de rua, ajudava-os por vezes, com sopa e cobertores antigos que não usava, cada polícia que patrulhava o turno da noite. Chamavam-lhe o Bom Samaritano, de início na brincadeira, mas de tanto uso colou-se à sua identidade como se de o seu nome se tratasse.
E assim o Bom Samaritano descia e subia as ruas, fazia conversa, descobria novas pessoas, sempre cumprindo o seu ritual – o sol nascia e recolhia à sua casa.
Mas o Bom Samaritano também provocava o seu temor. Os mais jovens, que se arrebanhavam em grupo, mergulhando em líquidos alcoólicos e drogas sintéticas, diziam-no vampiro, diziam-no portador de algo estranho. Os restantes, mais velhos e sabidos, talvez, chamavam-lhes estúpidos, dizendo que o cérebro já estava tão mirrado e parecido com um queijo suíço que só diziam asneiras. Não havia nenhum mistério, segundo estes, os candeeiros das ruas acendiam-se e apagavam-se devido à incompetência da companhia de electricidade da zona, que se marimbava para cumprir o seu trabalho, dizendo, em cada vistoria, que estava tudo dentro da normalidade.
Este era o mistério do homem.
Quando passava por cada rua, os candeeiros, novos e velhos, tremeluziam que nem loucos. À sua passagem, apagavam-se, voltando depois a acender-se, apagando-se novamente quando dobrava a esquina e, depois de uns bons dez minutos, tudo voltava à normalidade. O mesmo acontecia com os reclames de néon das lojas e dos bares. Os incrédulos culpavam a companhia. Os agnósticos não se atreviam sequer a contradizer ninguém. Os crédulos, esses, fugiam do homem, evitando-lhe o olhar e a fala, recusando-lhe a ajuda missionária.
Nunca dera muita importância ao facto de isto suceder. Acontecia-lhe desde criança, ver os candeeiros eléctricos enlouquecer à sua passagem e sempre o devera ao facto de que entre ele e a tecnologia, fosse ela qual fosse, era impossível qualquer relação. Tantas e tantas histórias que o homem podia contar, quantos desastres quase provocara, quantos namorados vira ceder à paixão num súbito corte de energia, quantos homens vira ceder ao medo…. Mas nada disso interessava, aquilo simplesmente acontecia. Ponto final. Nem tudo tem uma explicação, reforçava constantemente no seu interior. Tal como as suas origens e o seu destino. Tal como as vozes e os passos do casarão em que vivia…

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