10 janeiro, 2007

O Chapéu


O chapéu reflectia o estado do seu amo. A boa disposição quando encostado de lado, qual Bogart ressuscitado, em plena despedida de Casablanca, sem pensar na morte às mãos dos nazis. A paixão e o profundo respeito pela amada, quando com a mão nervosa o colava ao peito, em dias de namoro à janela, de piropos camuflados em profundas divagações sobre o estado do tempo e de como a luz do Sol sublimava sobretudo a beleza de uma Lady Marian enclausurada pelos ferros trabalhados em flor da pequena janelinha.
Ora o chapéu temia sobretudo a cólera do amo, a irritação, o estado de exaltação tal que já não houvesse nada a fazer. Um dia, lembrava-se, ufano, chegara mesmo a ser pisado, retorcido e espancado junto ao balcão da tasca da terra, quando o amo tudo deitara a perder no jogo. Ou até mesmo daquela vez que mandou o presidente da freguesia para "o alho e para a cebola" (sic) porque este o tinha molhado com a rega do quintalório da junta, chegando a utilizá-lo como arma de tabefe no presidente.
Ora isto tinha de acabar. Este chapéu chegava a temer, verdadeiramente, pela sua vida. Todos os dias sentia a ansiedade das emoções que aí viriam, todos os dias o nervosismo de ser atirado ao chão ou de ser obrigado a ouvir aquelas lamechices do namoro à janela. Estava francamente farto, queixava-se aos outros chapéus que por ele passavam na rua, cumprimentando-o e inquirindo-o acerca da sua situação. Por vezes, quando o amo se lembrava de o colocar no bengaleiro, reuniam todos os chapéus e aconselhavam-no na sua amargura e consciência de uma vida difícil. Todos haviam passado por coisas semelhantes: uns eram tão maltratados que o dono deveria ser preso ou passar pelo mesmo, desabafavam; outros, recordavam tempos piores e a estima que voltaram a sentir, devido ao escasso poder económico na vila para alargar a família dos Chapéus; mas havia outros, os mais jovens e rebeldes que eram apologistas da vingança e do "larga-piolho" na cabeça do amo, até que este se visse obrigado a estimar um tão útil complemento, que até o protegeria do dito piolho.
Mas o nosso chapéu não se conformava. De noite, pendurado no bengaleiro à entrada da casa do amo, perdia horas de sono e descanso tentando magicar uma fórmula mágica que o imunizasse das emoções do amo....

(continua na próxima semana)

1 comentário:

  1. ¡Vaya! Tal vez de tanto desear no ser vapuleado y arrastrado por las emociones consiga quedarse en el perchero... quieto... tranquilo... Pero eso tiene también otro peligro para los sombreros: llenarse de polvo y no volver a salir a la calle.

    ¡Lindo cuento!
    Espero el final con candelitas :)

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