O sangue subira-lhe à cara, enchendo cada um dos seus minúsculos poros. Da mãozinha leve ao cabelo em cacho solto, o tique irritante de quem ouve o que não gosta. Nada mais confuso que não poder responder, porque se se bate o pé desce-se ao nível de quem olha, gozão, com as mãos lambuzadas na porcaria em que chafurda.
Estava neste tique faz-de-conta-que-não-ouves quando a porta se abriu. Vindo sabe-se lá de onde, descobriu que afinal havia mancebos jeitosos neste mundo, qual príncipes encantados que salvam princesas - não que se julgasse uma princesa, mas um bocadinho de realeza também não fazia mal a nínguém - com cavalos brancos (ou pretos ou castanhos, quiçá). A personagem arrebitara o nariz adunco e afiara os bigodes com ar matreiro. Ao pormenor, tentar esmiuçar a origem da moça - e que bela moça - acabada de corar e com um vestidinho mais que catita. "Isto é que é mulher!" - lambuzava-se interiormente, afiançando-se de que não sairia dali hoje sem se apresentar e acompanhar a senhorita até a casa. Porque as senhoras já casadas não coram, confirmava de si para si - indignam-se. Com esta troca toda, o humilde narrador omitiu-vos o lugar e outros que tantos factos necessários para o acompanhar da narrativa. Peço-vos perdão, caros leitores, mas o momento urgia ser descrito, o tempo escasseia.
A menina e o cavalheiro encontram-se numa esquadra da polícia, mais propriamente na grande capital do nosso país, Lisboa. Poderia até precisar-vos o local e a hora, mas duvido que vos contribua com isso para a felicidade do comum, e até me parece que não gostais de tanto pormenor. Pois bem, passemos às apresentações: a menina corada, sujeita há momentos a uma grave calúnia chama-se Marissa. É trigueira, mas composta, de boas famílias e séria educação. Mas o feito, ó o feitio. Disso ficareis a saber mais adiante, afianço-vos. É necessário dizer, antes de mais, que Marissa é filha de oficial francês e mãe portuguesa, estando sempre ao corrente da última moda e do último suspiro da sociedade lisboeta e além-fronteiras. Tem, contudo, um traço deveras impressionante - despreza o esbanjamento e possui um carácter verdadeiramente dedicado a quem tem parcos recursos e motivos para viver. Mas e o cavalheiro? Como nos poderíamos esquecer dele? Os bigodes castanhos, o nariz adunco onde descansavam as lunetes e a bengala de apoio de marfim, recordação do avô, herói em África. O cabelo colado e umas pernas altíssimas davam-lhe um aspecto desengonçado, sem contudo lhe retirarem a pose. Sabemos que o Dr. Matias é solteiro e nunca pensou em casar-se, embora de mal-grado se dedique à fantástica arte de seduzir senhoras de boas famílias e de depressa se cansar delas - "É vício!", diz. Formado em Botânica, tirando o curso mais devido ao nome de família do que propriamente ao esforço próprio, possui uma fortuna invejável, de grande maioria deixada pelo tal chefe do clã, Giacomo Matias.
A menina e o cavalheiro encontram-se numa esquadra da polícia, mais propriamente na grande capital do nosso país, Lisboa. Poderia até precisar-vos o local e a hora, mas duvido que vos contribua com isso para a felicidade do comum, e até me parece que não gostais de tanto pormenor. Pois bem, passemos às apresentações: a menina corada, sujeita há momentos a uma grave calúnia chama-se Marissa. É trigueira, mas composta, de boas famílias e séria educação. Mas o feito, ó o feitio. Disso ficareis a saber mais adiante, afianço-vos. É necessário dizer, antes de mais, que Marissa é filha de oficial francês e mãe portuguesa, estando sempre ao corrente da última moda e do último suspiro da sociedade lisboeta e além-fronteiras. Tem, contudo, um traço deveras impressionante - despreza o esbanjamento e possui um carácter verdadeiramente dedicado a quem tem parcos recursos e motivos para viver. Mas e o cavalheiro? Como nos poderíamos esquecer dele? Os bigodes castanhos, o nariz adunco onde descansavam as lunetes e a bengala de apoio de marfim, recordação do avô, herói em África. O cabelo colado e umas pernas altíssimas davam-lhe um aspecto desengonçado, sem contudo lhe retirarem a pose. Sabemos que o Dr. Matias é solteiro e nunca pensou em casar-se, embora de mal-grado se dedique à fantástica arte de seduzir senhoras de boas famílias e de depressa se cansar delas - "É vício!", diz. Formado em Botânica, tirando o curso mais devido ao nome de família do que propriamente ao esforço próprio, possui uma fortuna invejável, de grande maioria deixada pelo tal chefe do clã, Giacomo Matias.
(a continuar)
Autor: Lunaris
Depois de uma primeira leitura, e tendo em conta que te ando a pedir algo do género há não sei quanto tempo... Excelente!!
ResponderEliminarEstas mesmo com as prosas! olha Lunaris, eu reabri o Vampiria, mas será mais para ter tmb um ponto literário, nao é o que sou, como sabes. Beijo
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