Numa noite de nevoeiro denso, Mariana caminha sobre a Ponte Vasco da Gama, com um único destino: saltar para o Infinito longe de si, da hipocrisia do mundo, das vizinhas tagarelas que nunca ouviu e do velho da mercearia do bairro que costumava fazer mímica na tentativa que ela o entendesse, sem saber que bastava apenas um movimento natural dos lábios para de lá saírem os sons que só ela conhecia. Caminha lentamente, inspirando dentro de si todas as imagens da sua vida: o primeiro aniversário, o primeiro desgosto, o primeiro amor, o dia em que a tristeza alastrou em si para nunca mais sair. De súbito, pára. Os carros passam, buzinando à sua volta. A respiração tornara-se-lhe ofegante, cada vez mais ensurdecida...
Começou tudo ali, num café do miradouro da Graça. O sol raiava em todo o seu esplendor e aqui e ali viam-se pombos a depenicar um pouco de pão duro. Passeando ou fugindo à sua vida de todos os dias, as pessoas não deixavam de tornar aquele num local abandonado ao silêncio e à beleza da cidade das sete colinas. Local de harmonia invulgar ou de uma memória duradoira, por excelência reúne em si a visita dos mais variados pontos do mundo. As pessoas são apenas mensageiros, lembrou-se, ao virar a derradeira página de um livro lido vezes sem conta.
Eu lia um livro. E por vezes lembrava-me de ti, dessa noite e desse dia em que nos trocámos e passámos a ser Outros. Por vezes, julgava ter encontrado uma outra dimensão da vida. Nessas alturas chegava a engasgar-me de raiva, por não ter sabido descobrir a vida. Aqui e ali sentia-me perdida, à deriva num mundo que não compreendia mas em que não sabia reclamar. Limitava-me a respirar e a seguir. Seguir em frente. Tu vieste num dia de Sol. Os pombos sorriam ao ver-me no mesmo canto do miradouro, com a mesma expressão de vazio, abandonando-lhes um pouco do pão do dia anterior.
Na Graça, tudo era diferente, tudo se equacionava em harmonia e silêncio e se transformava num dia ideal. Era este o meu mundo, de silêncio, de energia surda dentro de mim, de sons imaginados e nunca sentidos.
Eu não sabia o que era o som e tu mostraste-me. Responder-me-ias que talvez não, "não digas disparates" – mas eu soube o que era o som - o canto, o riso e a dança – quando te vi parado no miradouro, a olhar pra lado nenhum de Lisboa. Notei-te a ânsia de cair, de gritar e espernear. Senti-te numa convulsão de sentimentos que não se vêem nem se percebem, apenas quando passamos por eles. Tu olhaste-me e eu fugi. Sem pão, sem livro, fugi. Na altura não sabia porque fugia. O porquê de as pernas me guiarem o medo e aquela ânsia de me esconder algures.
Ainda agora, nesta noite de nevoeiro em que tudo é mais que amargo, consigo sorrir na loucura de quem já sentiu na pele um momento de felicidade e que nunca mais o irá recuperar. Eu era medo e pânico, numa âmbigua vontade de abraçar o desconhecido do Miradouro e dizer-lhe nas palavras que nunca conseguiria sussurrar: “Tudo passa. Dói, mas passa.” Eu soube o que sentias. Não me perguntes como, não me respondas com os teus “não digas disparates”. Tu afogavas-te na vontade de gritar ao miradouro a tua raiva e mergulhar na velha Lisboa que já tudo viu. Quando vieste ao meu encontro, percebi que tu também tinhas entendido o meu medo. Deste-me o livro. O pão abandonado aos pombos. O teu sorriso nublado pelas sombras de uma tristeza infinita contou-me tudo o que precisava de saber, mostrou-me tudo o que jamais iria viver: que entenderias as vizinhas tagarelas que nunca ouvi e o velho da mercearia do bairro que costumava fazer mímica na tentativa que eu o entendesse, sem saber que bastava apenas um movimento natural dos lábios para de lá saírem os sons que só eu conhecia...
24 novembro, 2005
Os Outros
by Lunaris
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Será a Mariana do ilustre Camilo Castelo Branco? a forma como essa quer voar para fora da sua realidade, não sei porquê fez me lembrar a do Amor de Perdição... não sei porquê!
ResponderEliminarNão, não é... o drama desta é muito mais físico, muito mais incontornável que o dessa Mariana... Não tem mesmo nada a ver com o Amor de Perdição... segundo a minha perspectiva, claro... :)
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